MARANHÃO – A reunião entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os governadores para tratar da proposta de emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, sediada no Palácio do Planalto nesta quinta-feira, teve desabafo dos convidados e expôs a profundidade de um problema que o texto deve passar longe de tapar.
A PEC elaborada pelo ministro Ricardo Lewandowski (Justiça e Segurança Pública) deve ampliar as competências da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal para fortalecer o combate a facções, padronizar protocolos, informações e dados estatísticos e constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública e o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Nesta tarde, a proposta foi, enfim, divulgada.
A expectativa do governo federal ao convocar os governantes para um encontro em Brasília era colher considerações e eventuais críticas ao projeto e medir a recepção ao texto antes de enviá-lo ao Congresso. Por versar sobre uma atribuição conferida pela Constituição Federal de 1988 aos próprios Estados, a proposição poderia gerar celeuma, dos rivais aos aliados.
Durante mais de quatro horas, no entanto, Lula ouviu alguns chefes estaduais desabafarem sobre a situação da criminalidade em seus territórios. Momento particular protagonizou o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), ao vaticinar a metástase pela qual pode passar o País se a atuação criminosa praticada em seu Estado não for debelada a tempo.
“É terrorismo o que está acontecendo. Hoje é no Rio, amanhã pode ser em São Paulo, depois na Bahia. Os que não estão passando por isso hoje, tenham certeza, colegas, passarão muito em breve”, previu.
Para além da consternação, muitos deles sugeriram a manutenção do debate para a elaboração de um pacote de medidas a ser enviado ao Congresso, além da PEC. A previsão de criar o Conselho Nacional de Segurança Pública para reforçar a integração entre entes estaduais e federais foi vista com bons olhos.
A satisfação mostrada pelos convidados com a oportunidade de se juntarem para debater o assunto, num dos Países mais acossados pela violência no mundo, revelou o tamanho dos problemas com que os governos estaduais têm de lidar. Veio de Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo e adversário de Lula, uma das ideias de ampliar o escopo de mudanças capitaneadas pela PEC.
“O assunto não pode ficar restrito à PEC. Ela isoladamente não tem a capacidade de resolver o problema da segurança pública. Talvez a gente pudesse dar, a partir desta reunião, um primeiro grande passo de estabelecer um grupo de trabalho e formular uma série de propostas que vêm em complemento e podem ajudar”, propôs o governador.
Carlos Brandão (PSB), governador do Maranhão, defendeu que o governo articule ações além das previstas na PEC, discutindo financiamento do crime, impunidade e atividades ilícitas na fronteira. Elmano de Freitas (PT), do Ceará, seguiu na mesma toada. ““Sujeito prende o infrator num dia, dois dias depois ele é solto. Então isso é um estimulo a impunidade”, disse.
Mas nenhuma ideia trazida pelos presentes teve tanta adesão quanto a de dar maior autonomia para Estados modificarem a legislação penal. Renato Casagrande (PSB), do Espírito Santo, e Fábio Mitidieri (PSD), de Sergipe, queixaram-se que “o Congresso faz as leis, e nós (governadores) pagamos as contas”. Tarcísio, por sua vez, sugeriu até mesmo alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente — que geralmente é visto por conservadores como empecilho para a redução da maioridade penal.
Por trás da sugestão está o desejo de governadores de endurecer a punição a crimes e enfraquecer mecanismos estabelecidos pela Justiça para garantir direitos, como as audiências de custódia. Os governadores argumentam que ficam restringidos a executar leis aprovadas em âmbito federal, e que por vezes se veem de mãos atadas para reduzir a impunidade, ao mesmo tempo em que são cobrados pela população para tal.
O goiano Ronaldo Caiado (União), que já vinha subindo o tom contra a proposta antes mesmo da reunião, destoou dos colegas ao chamar a PEC de “inadmissível” e “usurpação de prerrogativas”. “O governo federal tem que servir de apoio a nós e não ditar as regras”, disparou. Depois, afirmou ter sido capaz de acabar com a criminalidade em seu Estado sendo implacável com os marginais — o que rendeu deboche de Lula ao fim do encontro.
Em algumas considerações, pouco se falou da PEC. Entre as sugestões ventiladas estão pressionar países vizinhos exportadores de cocaína, integrar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ao trabalho dos Grupos de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) estaduais, abrir linhas de financiamento de tecnologia junto ao BNDES, fortalecer um sistema nacional de controle de fronteiras, revisar a Lei de Imigração e permitir o financiamento de custeio por parte do FNSP, que hoje é restrito a investimentos.
Depois de repousar no departamento jurídico da Casa Civil por meses, a PEC da Segurança Pública deve passar por nova rodada de refino antes de seguir para o Parlamento. O Consórcio do Nordeste se reúne na semana que vem para fechar uma posição sobre o tema. Outros chefes estaduais farão o mesmo em seus determinados lugares.
Mas os esforços para tirar o Brasil do mapa da violência parecem ter ficado mais insuficientes do que se almejava de origem. Se o projeto foi concebido como a grande aposta do governo Lula para a área da segurança pública, a reunião encerrada nesta noite mostra que será preciso outras cartas na manga para triunfar nesse jogo.
Ironia
O presidente Lula (PT) ironizou o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), ao dizer que conheceu o único Estado sem problemas de segurança. O petista citou o político no discurso de encerramento de reunião sobre segurança pública no Planalto. O governador afirmou no encontro que acabou com o crime no Estado e criticou PEC do governo federal.
“[A segurança] é uma situação muito complicada no Brasil inteiro. Tive a oportunidade hoje de conhecer o único Estado que não tem problema de segurança que é o Estado de Goiás que eu peço para o Lewandowski ir lá levantar porque pode ser referência para todos os outros governadores. Ao invés de eu chamar uma reunião era para o Caiado que deveria ter chamado a reunião para orientar como é que se comporta para gente acabar com o problema da segurança em cada Estado”, disse o petista em tom bem-humorado.
O governador de Goiás, disse que a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da segurança pública apresentada pelo governo do presidente Lula é “inadmissível”. Ele criticou parte do texto que dá ao governo federal a prerrogativa de determinar diretrizes gerais para a segurança pública.
“Isso é inadmissível, é uma usurpação de poder, é uma invasão de prerrogativa numa prerrogativa que já está garantida a nós governadores. Eu acho que o governo federal devia tratar num pacto internacional porque são 3 ou 4 países só que produzem cocaína, não tem mais do que isso: Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia“, afirmou em reunião no Palácio do Planalto, em Brasília.
O encontro foi organizado pelo governo federal para dar conhecimento aos Estados da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) preparada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, chefiado por Ricardo Lewandowski, para tentar melhorar o combate ao crime no Brasil.
O projeto do governo constitucionaliza o Susp (Sistema Único de Segurança Pública), instituído em 2018 e que atualmente é uma lei ordinária. Eis a íntegra
Lula afirmou que houve pessoas que lhe disseram para não deixar toda a reunião ser transmitida ao vivo por temerem críticas, mas o petista disse que o encontro era justamente para começar um debate.
“Havia pessoas que achavam que a imprensa não deveria cobrir toda a reunião porque poderia aparecer gente falando contra a PEC ou não concordando com a ideia do governo. E eu disse a gente iria abrir porque a reunião era para a gente aprender e para que as pessoas falassem a visão que elas têm sobre a questão da segurança pública. A PEC não é um produto acabado, ela é apenas a chave que está abrindo uma porta para um debate que, se a coisa é da gravidade que todos vocês falaram, é o tema principal a ser encontrada uma solução”.
Depois da reunião, o governador rebateu o petista: “Não é um assunto para ser discutido nesse nível. Não cabe ironia, é um problema muito sério. É um problema para o cidadão”.
Tripé da PEC
A proposta do governo tem como tripé aumentar as atribuições da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), dar status constitucional ao Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criado por lei ordinária em 2018 (Lei 13.675) e também levar para a Constituição Federal as normas do Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, unificando os atuais Fundo Nacional de Segurança Pública e o Fundo Penitenciário.
De acordo com o texto da PEC apresentado aos governadores, a PRF passa a se chamar Polícia Ostensiva Federal, destinada ao patrulhamento de rodovias, ferrovias e hidrovias federais. Autorizada, a nova policia também poderá proteger bens, serviços e instalações federais; e ”prestar auxílio, emergencial e temporário, às forças de segurança estaduais ou distritais, quando requerido por seus governadores.”
No caso da Polícia Federal, ela passará a ser destinada a “apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União, inclusive em matas, florestas, áreas de preservação, ou unidades de conservação, ou ainda de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, como as cometidas por organizações criminosas e milícias privadas.” Lewandowski pondera as mudanças na PF e atual PRF atualizam o que já ocorre “na prática”
A PEC assinala que o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária não poderá ser contingenciado e terá o objetivo de “garantir recursos para apoiar projetos, atividades e ações em conformidade com a política nacional de segurança pública e defesa social.”
Padronização
O governo federal ainda quer uniformizar protocolos de segurança como boletins de ocorrência e certidões de antecedentes criminais, e a geração de informações e dados estatísticos. Segundo Ricardo Lewandowski, a intenção é “padronizar a língua mas cada estado no seu sistema”, como foi feito no Poder Judiciário para compartilhar e alimentar a mesma base de dados.
Na apresentação aos governadores, o ministro garantiu que a PEC “não centraliza o uso de sistemas de tecnologia da informação; não intervém no comando das polícias estaduais; não diminui a atual competência dos estados e municípios; e não cria novos cargos públicos.”
O governo defendeu a necessidade de mudar a Constituição argumentando que “a natureza da criminalidade mudou. Deixou de ser apenas local para ser também interestadual e transnacional.”
“Se no passado eram as gangues de bairro, o bandido isolado, violento que existia em uma cidade ou outra, em um estado ou outro, hoje nós estamos falando de uma organização criminosa que ganha contornos rápidos de organização mafiosa no Brasil, já que eles não só estão no crime, mas estão migrando para a economia real. Estão dando cursos de formação para concursos de polícia militar e da polícia civil. Estão participando no financiamento das campanhas eleitorais”, acrescentou Rui Costa, ministro-chefe da Casa Civil.
Trâmites
O governo admite que a PEC poderá ser modificada após as contribuições dos governadores antes de ser encaminhada ao Poder Legislativo.
Em regra, uma proposta de emenda constitucional deve ser avaliada separadamente nas duas casas do Congresso Nacional- a Câmara dos Deputados e o Senado Federa, sucessivamente. Em cada casa, deverá ser submetida às comissões de Constituição e Justiça para verificar admissibilidade.
Se aceita, a PEC deverá ser discutida em comissão especial. Aprovada, vai para o Plenário. Tanto na Câmara como no Senado, para ser aprovada a PEC tem ter ao menos três quintos dos votos em dois turnos de votação. No mínimo, 308 votos favoráveis dos deputados federais e 49 votos favoráveis dos senadores. Para aprovação nas duas casas, o governo precisará de votos favoráveis da oposição.